desculpe o transtorno, preciso falar sobre um relacionamento abusivo


Aos quinze anos é tudo um mausoléu. As coisas nos atingem com o dobro da intensidade do que quando se tinha doze e dói. Aos quinze anos com aquelas espinhas na cara, um casaco de general e o caderninho de poesias no bolso eu escrevia poemas sobre como o amor poderia curar. Porque aos quinze anos tem muito disso, se apaixonar por alguém e achar que isso vai nos salvar das noites mal dormidas chorando.

[lembro de quando eu tinha uns cinco anos e vi um casal se beijando na rua, e achei aquilo asqueroso. minha babá riu, e disse que quando eu crescesse aquilo seria a coisa mais natural do mundo pra mim. Com sorte amor faz aquilo com a gente ela disse.]

Eu estava infeliz pra caramba, mas mantinha a pose de durão. Porque não havia no mundo coisa que o amor não podia curar. Eu acreditava nisso.

Foi aí que eu conheci o Tiago. Eu estava no segundo ano, lembro bem, eu tinha acabado de mudar de escola e lá estava ele, de longe o cara mais incrível e influente de lá. Tiago tinha um cabelo engraçado com uns tons de grisalho uns olhos castanhos claro meio puxadinhos e umas sardinhas no rosto. No quinto dia de aula eu tomei coragem pra conversar era aula de filosofia eu fingi não ter entendido e ele me explicou de maneira ilustre ficamos conversando o dia inteiro sobre n coisas sobre a vida sobre o universo o tempo voou.

Na segundo Tiago não foi à aula. Na terça também não. O que haveria acontecido? Fiquei louco. Na quarta durante a aula de educação física eu cai e bati a cabeça. Até então nunca havia sentido tanta dor na vida. Tiago surgiu do nada me ajudou a levantar e buuuum. 
[a dor passou ao vê-lo]

Aos quinze anos o amor cura tudo.

Na quinta Tiago me chamou pra lanchar. Na sexta me ligou chorando no meio da noite e ficamos conversando por horas. Ele me falou das suas bandas favoritas: me fez gostar de the doors, U2, simple plan e oásis. Eu lhe falei de los hermanos, the calling, kid abelha e creed. O poeta favorito dele era o Leminski assim como eu, ele até tinha uma tatuagem no antebraço “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além.” Tiago adorava contar piadas bestas que só ele ria, mas era tão gostoso ouvir aquela risada que eu nem me importava. Fomos dormir depois de umas três horas.

Escrevi o primeiro poema de amor pra Tiago. Aos quinze anos o amor cura tudo. Ah mas Tiago já tinha quase dezessete.

Duas semanas passadas era a festa de aniversário de Tiago bebemos demais a noite inteira e até que Tiago me beijou


pausadamente. 


Tiago não falou o dia seguinte inteiro comigo e na semana seguinte também não. No domingo me ligou bêbado chorando, se desculpou por não ter falado comigo e disse que não entendia porque não o procurei e que não se lembrava de nada da noite de seu aniversário.

Quase um mês depois num momento de distração meu Tiago pegou meu caderno de poesias e leu as coisas que escrevia. Tiago saiu esbaforido e sumiu por semanas. Nada nunca tinha doído tanto. Por que aquilo estava acontecendo comigo?

Aos quinze anos o amor cura tudo.

Lembro que já era tarde da noite e chovia tanto, Tiago correu até minha casa e me deixou um bilhete “o destino quis que a gente se achasse, na mesma estrofe e na mesma classe, no mesmo verso e na mesma frase. – Leminski” [o nosso poeta favorito]. Eu nem acreditava em destino, mas acreditava em Tiago. Caralho o Tiago me amava. No dia seguinte fomos ao cinema e assistimos “medianeiras” [Tiago amou, falamos sobre ele por semanas] no mesmo dia aconteceu o nosso primeiro beijo [dessa vez sóbrios] foi doce e delicado [me lembrei de quando tinha 5 anos e vi aquele casal se beijando, agora eu entendia o que o amor fazia]

Aos quinze anos o amor cura tudo.

Na caminhada pra casa Tiago me recita um poema de um poeta novo nosso amor é impuro como impura é a lua e a água e tudo quanto nasce e vive além do tempo. Minhas pernas são água, as tuas são luz e dão a volta ao universo quando se enlaçam até se tornarem desertos e escuros. E eu sofro de te abraçar depois de te abraçar para não sofrer. “E toco-te para deixares de ter corpo e o meu corpo nasce quando se extingue no teu – Mia Couto” e no meio do sorvete sorrindo me pediu em namoro.

Aos quinze anos o amor cura tudo.

Três dias depois Tiago dês entrelaça nossas mãos nas ruas.
seis dias depois Tiago me renega aos amigos.
no dia seguinte ri de um comentário estúpido de um amigo sobre mim.
(na minha cabeça era tudo normal e eu o escrevia poemas) 

Tiago me deixou plantado na porta do cinema pra curtir com amigos e me culpou por cobrá-lo. Tiago me culpava pelos comentários dos amigos. Tiago se embebedou numa festa e me culpou por não tê-lo impedido. Tiago me disse: cheira ai e me largou sozinho num lugar desconhecido completamente louco e me culpou por ter ficado louco. Eu me culpava e escrevia poemas bonitos pra Tiago na vã tentativa de que ele me perdoasse.

Aos quinze anos o amor curaria tudo

Tiago me anuncia na véspera da partida que iria morar em outra cidade e me culpa por estarmos naquele estado; Tiago viaja e some por seis semanas, (na minha cabeça era tudo normal e eu o escrevia poemas) na véspera do meu aniversário Tiago reaparece e me culpa pelo sumiço e por termos chegado ao fim. Tiago põe relacionamento serio horas depois numa rede social com outro e me culpa pela traição.

Agora aos dezesseis o amor curaria tudo?

Eu ligava e ele não atendia
Eu ligava e ele não atendia
Eu ligava e ele n ã o a t e n d i a

Eu chorei incessantemente durante seis dias e seis noites e escrevi os mais tristes poemas e me culpava por aquela merda toda. Aos dezesseis eu não queria sentir nada, mas de algum modo esperava que o amor dos quinze me curasse de tudo. Quatro meses depois eu pesava dezesseis quilos a menos seis meses depois Tiago retorna a escola após a morte do pai. Dois dias depois a gente discute e Tiago me empurra na escada e me culpa por ter sido tão agressivo. No mesmo dia Tiago me liga pedindo desculpas e diz estar com saudade. E eu só conseguia pensar que aquilo era o amor curando tudo (na minha cabeça era tudo normal e eu o escrevia poemas bonitos).

Aos dezesseis anos o amor cura tudo

Tiago agora ria dos meus poemas.
Tiago agora detestava Mia Couto ou Leminski.
Tiago agora sumiu freqüentemente por dias.
Tiago deixava escancarado que não se importava com o que eu sentia.

Aos dezesseis anos o (meu) amor (me) curaria de tudo

Eu já não acreditava tanto no amor que Tiago me oferecia naquela sala de cinema. [mas acreditava que ele me curaria] 
parei de escrever poemas romantizados sobre ele.
Tiago agora era alguém que eu não conhecia, mas sentia falta de amá-lo [isso não doía].
Tiago agora era alguém que eu não conhecia e aqueles olhos castanhos claros e cabelos grisalhos logo logo seriam substituídos por outro.
Tiago agora era alguém que eu não conhecia e os poemas de Leminski já não eram como antes.
Tiago agora era alguém que eu não conhecia de cabelo loiro e piercing no nariz.
Tiago agora era alguém que eu não conhecia e a lembrança vaga não doía.
Tiago agora era alguém que eu não conhecia.

Aos dezessete meu amor me curou de tudo.


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